Sempre me gabei por não incorporar a minha vida pessoal todas as influências negativas que sou acometido durante meu trabalho. Maneirismos, gírias, violência, descaso, opressão, revolta, tensão, medo e outras situações adversas que bombardeiam a personalidade de qualquer um. Desde o curso de formação sabia o que me esperava - foram aproximadamente duzentas extenuantes horas-aulas teóricas sobre rotinas penitenciárias que sempre terminavam com a seguinte frase:
- Vocês nunca mais serão os mesmos, seja qual for o tempo que passarem pelo “sistema”.
É assim que é chamado o nosso círculo de trabalho: de sistema. O sistema é complexo, porém muito rico em conhecimentos, acontecimento e questionamentos. Durante o curso de formação, a primeira vista, absorvi todo o conhecimento dos meus professores-instrutores: colegas de trabalho com mais de vinte anos de carreira, psicólogos, advogados, policiais negociadores, psiquiatras, médicos sanitaristas, bombeiros e uma outra infinidade de profissionais ligado a área da saúde física, mental e da execução penal.
Tenho certeza de que fui bem preparado, fizeram de tudo para desistirmos de tomar posse: Influenciando com depoimento de colegas que foram reféns em rebelião; slides com fotos das doenças que estávamos expostos; pressão psicológica; visitas técnicas as mais precárias unidades do Estado. Apenas os contras, cada dia mais, até realmente estarmos preparados para o pior e esperá-lo. Muita informação sobre uma realidade de pessoas que vivem à margem da sociedade e, a partir de então, seria a nossa realidade.
Nada me assustou por incrível que pareça: nem as fotos de presos no manicômio em estado terminal, destruição durante rebeliões, os depoimentos, as realidades do sistema, a apatia física dos “antigões”, a feição de ódio dos apenados, o estado caótico da máquina estatal. Minha única preocupação era não chegar a extremos, para tanto, eu tentei me blindar para não ser afetado por nada e ninguém.
A priori, minha tentativa foi por água abaixo, depois de uma tenra adaptação ao novo trabalho, novas atribuições foram nos sendo concedidas e com elas vieram a pressão. Senti, entrei em colapso, o sistema englobou toda minha vida, quando percebi estava às vésperas de usufruir compulsoriamente de uma licença médica por dezenas de moléstias psicossomáticas. Não pensei em desistir, mas sofri muito por não ter a devida experiência para lidar com tantas situações adversas ao mesmo tempo. Resolvi insistir, graças a um ensinamento de um instrutor que se aposentou, - dizia ele do alto dos seus trinta anos de sistema:
- Sei que vocês são jovens, a maioria com diploma de curso superior; melhores preparados - tanto emocionalmente, quanto fisicamente, mas se vocês quiserem passar pelo sistema, mesmo que por pouco tempo, tem que aprender a trabalhar. Isso se resume a não deixar ser absorvido pelo sistema.
João, o instrutor, tinha razão, foi então que fui trabalhar no período da noite para reavaliar meus conceitos sobre eficiência, trabalho em equipe, liderança, poder, reorganizar minha vida pessoal e repensar meu modo de trabalho e todos os pontos que me afetavam diretamente.
Novos conceitos foram atribuídos às minhas rotinas, sendo o principal o fator relevar. Demorei um pouco para entender que estava dentro de uma panela de pressão gigantesca, regida por normas e leis que não funcionam na prática e que se confrontam com vontades de mil pessoas diretamente. Somos obrigados a tomar decisões em milésimos de segundos e que ninguém sequer fica sabendo, a não ser que seja a decisão errada, caso contrário evitamos uma situação de risco. Outro peso importante a ser medido era a minha capacidade de maleabilidade diante das relações interpessoais, pois neste quesito deixava a desejar. Na verdade, eu era limitado e demorei a aceitar isso. E ainda sou.
Novamente, os ensinamentos de João me vieram à cabeça:
- Estamos sempre aprendendo, pois o dia em que acharmos que sabemos tudo, com certeza estaremos com um “estoque” no pescoço. (Estoque: instrumento afiado e pontiagudo, feito artesanalmente de qualquer material, utilizado como arma branca dentro de presídios.)
Aquele jovem aposentado colega tinha razão em tudo o que nos passara - principalmente na primeira afirmação. Eu tentei de todas as formas não ser absorvido, mas eu fui. O sistema me engoliu de tal forma que não percebi, mas os que me conheciam antes sim. E pelo visto é um processo irreversível. Incorporei uma característica que não era minha, ou talvez, não em grau tão absurdamente elevado. Externei uma agressividade que não existia em mim antes, isto é um fato concreto, pois já não agüento mais ouvir sobre esta mudança definitiva de comportamento, que eu próprio achava aceitável.
Sou extremamente agressivo em todos os sentidos, sai pelos poros e é incontrolável, contudo isto não desencadeia necessariamente violência, graças ao meu auto-controle, mas sou extremamente voraz, ávido por o que quer que seja.
Entretanto, o que me espanta mesmo é que a agressividade não é direcionada ao sistema, nem ao trabalho em si, mas a minha vida pessoal. Conto nos dedos de uma mão as vezes que me descontrolei no trabalho, mas no meu dia-dia pessoal isso é crônico, é uma rotina cansativa, desgastante tanto para mim quanto para o resto da humanidade que convive direta ou indiretamente comigo. O problema não é o trabalho, mas a influência que ele teve na minha vida.
Eu não faço o que eu gostaria de fazer profissionalmente, mas gosto muito, demais do que eu faço e sou extremamente grato pela enriquecedora experiência (tanto boas quanto ruins) que adquiri nestes breves, porém intensos, quatro anos de sistema. Não é o meu objetivo, mas se me aposentar aqui, que seja compulsoriamente por idade, e não por invalidez.
Hoje aprendi a trabalhar Sr. João, mas ainda não aprendi a viver.
Fabiano,você é jovem ainda, lute com sua sabedoria para não se afundar a cada dia na agressividade que você relata. Você é sensível, só uma pessoa sensível faz um autorretrato dessa forma, por isso não se deixe vencer pelo "sistema" nunca. O sistema engoliu alguém que eu conheci, por esse alguém, antes, eu seria capaz de dar minha vida, mas o tal "sistema" foi mais forte, a lavagem cerebral foi inevitável e a fraqueza da pessoa contribuiu para isso. O fim foi terrível para ele, psiquiatras nao foram capazes de trazê-lo de volta a realidade e sem forças ele carrega a sentença de infelicidade. Pra mim, alívio.
ResponderExcluirFabiano a vida é única, você pode se resgatar, esse mundo não parece tão atrativo, mas é o único que conhecemos, não sabemos o que tem depois da morte, e a solidão pode ser uma espécie de morte aqui na terra. Como diria Renato Russo, "Se você quiser alguém
Em quem confiar, Confie em si mesmo, Quem acredita sempre alcança"