sábado, 10 de julho de 2010

Eu no divã.



O senhor me fazia perguntas muito obvias, mas eu gostava. Saia aliviado das sessões. Lembro-me do primeiro dia em que fui a sua clinica, por uma indicação de uma ex-namorada. No começo relutei, mas depois se fez necessário. Tinha grandes preconceitos quanto a isso. Independente deste fato liguei para marcar uma consulta e por sorte o médico atendia pelo meu convenio. Infelizmente este me limitava a seis consultas anuais, mais um generoso numero de sessões de terapia. Era o que eu precisava no momento. Fui atendido por uma senhora exageradamente atenciosa e educada, dotada de um sotaque nordestino, mas com um português extremamente polido. Só perdia para o garçom do Café Cardápio, onde eu batia cartão religiosamente toda semana e tomava sempre a mesma bebida: uma caneca bem cheia de chocolate quente com conhaque, acompanhado de empada de palmito ou quiche de carne seca. Salivava quando sentia o aroma leve da canela, juntamente com o perfume do chocolate, tudo isso combinado com uma dose generosa de conhaque. Só não sei se era da marca Macieira, como no Jardim do Diabo, de Veríssimo, mas era muito bom!

Chamava-se Eder, o garçom. Na verdade ele era como o metrin do café. Sempre impecável, com uma voz mansa e dotado de um grande talento em adivinhar quando as pessoas querem fazer outro pedido.

A atendente do consultório tinha um sotaque fortíssimo do nordeste, mas nunca tive a curiosidade de perguntar de qual região era. Perguntava sempre meu nome completo, qual o convenio e o dia que pretendia marcar a consulta. Sempre no final da conversa fazia questão de se gabar e com um tom de cobrança:

– O Dr. Menezes atende pontualmente, portanto não se atrase, por favôr.

Trabalhava como projetista num escritório de engenharia nesta época. Era um trabalho legal, mas exigia muito intelectualmente. Tinha contato zero com pessoas e isso era maçante no começo. Sempre procurando as melhores soluções, aliando economia com qualidade. Conversa de engenheiro. Rotina, na verdade. Pegava o desenho, “limpava”, traçava os pontos numa folha de papel e depois colocava no projeto. Depois disso, entregava para o meu chefe, ele fingia que revisava e o profissional da obra fingia que seguia o projeto. Eu gostava, era um trabalho despojado. Gostava de ir trabalhar de chinelos, bermuda tal como meu patrão, que chegava ao escritório pilotando sua potente bicicleta. Ano que vem completaria dez anos como projetista.

Tinha medo de ficar como os velhos projetistas da cidade. Era estranho, uma sensação de fracasso. Ninguém via com bons olhos projetistas velhos. Na sua maioria eram jovens explorados em tempo integral e não pais de família. Não ganhava muito, mas era incrível como conseguia guardar dinheiro naquela época. Sempre tinha dinheiro para emprestar para meu primo que nunca me devolvia, sair nos finais de semana, participar de orgias gastronômicas particulares e ainda pagar a faculdade.

Seu consultório ficava na rua Dr. Gurgel, próximo à catedral. Na verdade além de consultório, era sua residência. Não via com bons olhos isso. Não me inspirava muito profissionalismo. Mas hoje entendo, nada melhor do que juntar o conforto da casa com a necessidade do trabalho. Devido a este fato, os pacientes se sentiam privilegiados e, de certa forma, quebrava aquele ambiente inóspito de consultórios médicos. Que lugar melhor para se fazer terapia, que não uma clínica, mas sim uma casa e com um médico que não usa roupa branca?

Éramos recebidos fervorosamente pela secretária/irmã e/ou esposa (até hoje não consegui decifrar), que nos orientava a ficar na sala, sentados confortavelmente num sofá enorme de couro legítimo marrom, folheando revistas de fofocas ou algum folder sobre novas maravilhas da indústria farmacêutica para a felicidade instantânea. O ambiente não poderia ser mais agradável: um grande ventilador de teto, que produzia um barulho ao girar que proporcionava uma cadência que alimentava minha ansiedade. Uma vitrola antiga - uma raridade, onde sempre se ouvia musica francesa da década de 50, intercalando entre momentos de bossa-nova em inglês, dependendo do dia da semana, completavam a bela sala de espera.

Raramente encontrava com alguém na sala, Dr. Menezes era pontual ao extremo, então ninguém tinha que esperar. Nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Chegada a hora da consulta, Dr. Menezes abria a porta lentamente, olhava para mim com um sorriso impróprio para médicos e dizia:

- Entre pôr favôr.

Pegava na minha mão num sinal de educação e afeto. Eu como sempre, sentava numa confortável e imensa poltrona e ficava observando a imponente biblioteca particular que o medico tinha. Acredito que deva ter uns cinco mil volumes ou mais. Livros de medicina em várias línguas, muita literatura francesa, um ar condicionado que pode ser comparado a uma câmara fria. Havia também um quadro na parede, com seu busto. Parecia ser obra de um destes artistas de rua, mas era fiel. Diplomas e títulos por todas as partes, nas mais variadas línguas. Não havia fotos de familiares, achei estranho isso. Nada de fotos de crianças, esposas, mãe e afins.

Ligava o computador, começava a digitar como quem não tinha muita experiência, bem devagar e olhando ao teclado. Logo começava a ler o relatório da ultima consulta, sempre olhando para o computador, mas nunca me fitando. Lia os relatos da conversa da ultima consulta entoando cantos com um ronronar estranho. Eu sempre calado. Depois, olhava para mim e perguntava com sotaque nordestino.

– Fabiano, em que posso te ajudar?

Confesso que era uma pergunta muito vaga Dr. Menezes. Demorei a respondê-la. Eu queria ajuda, mas não sabia como e é por isso que as pessoas fazem terapia, certo? Na ânsia por resolver tudo de uma vez, logo partira para as questões práticas:

– Doutor, quero remédios! Destes que os milionários tomam quando ficam estressados por um longo dia de compras no shopping.
- Fabiano, dizia ele: – Como vai a relação com a sua mãe? Você gosta do que você faz?

Olhava no relógio e fazia menos de cinco minutos que estava naquela maldita sala e de repente me via numa vontade louca de sair dali correndo. Meu coração saltitava.

Pensava eu: – Não vamos falar sobre isso esta bem doutor? Vamos falar sobre musica francesa, o senhor é um grande apreciador, e eu, um grande curioso. Como o dia está ensolarado hoje não?

- Sabe Fabiano, até quando você vai empurrar seus problemas para debaixo do tapete?

Filho da puta! Sabia como mexer comigo. Vamos lá então Doutor, me empreste um lenço por favor, vamos começar! Logo no inicio, eu mentia um pouco e ele sabia disso. Tanto é que às vezes nem dava importância ao que eu falava. Adorava me colocar em contradição: sentia-me numa delegacia, onde todos os indícios me apontavam como o autor do crime e teria de alguma forma confessar. Um delegado perspicaz e eu, um mero coadjuvante sendo envolvido pelo seu jogo de perguntas e respostas.

-Admita Fabiano, vamos! – às vezes gritava num tom áspero. - Admita que a culpa dos seus problemas seja apenas sua e de mais ninguém. Na maioria das vezes eu via o riso incontido dentro daquele rosto envelhecido, eu sentia a sua malicia e, em conseqüência disso, a forma como eu ficava completamente oprimido e intimidado.

–Vamos lá Doutor, o que eu vou tomar agora? Não reagi bem a esta medicação e esta conversa não me foi muito proveitosa.

-Pois é Fabiano, se o senhor não misturasse os remédios com álcool e fizesse o tratamento como lhe prescrevi, com certeza teria melhoras. Infelizmente eu sinto que você é uma pessoa limitada emocionalmente Fabiano e vamos ter que trabalhar isso de alguma forma. No fundo acredito que você tenha capacidade, mas tem que sair desta inércia que te consome e aprender a assumir seus erros, meu filho.

- Até que enfim uma palavra de incentivo meu “pai” – pensava eu.
Fato é que ele sabia como mexer com meu brio. As malditas palavras ficavam martelando na minha cabeça por varias noites a fio. Pensava em fazer alguma coisa para surpreendê-lo na próxima consulta era como um contra-ataque, e eu o único beneficiado - mesmo sem intenção.

Eu era a resposta para todas as minhas perguntas. Enfim, eu pegava a receita, ele passava o cartão na maquina “registradora” e todos saíam satisfeitos: eu com os remédios, me sentindo aliviado e tentando me desvincular de certos medos e ele com o dinheiro, uma biblioteca enorme e muita musica francesa. Obrigado por tudo, querido Dr. Antônio Menezes Santana.

Ironias à parte, Dr. Meneses me fez enxergar um lado que eu não conhecia: o outro lado do espelho, então, descobri que existem dois culpados para os nossos problemas: os que os cometem e os que os imputam.

“O neurótico é a pessoa que constrói castelos nas nuvens, o psicótico é que mora dentro deles, e o psiquiatra, é quem cobra o aluguel.”
(Jerome Lawrence).

“Veja pelo lado bom, com esquizofrenia você nunca está sozinho.”
(Autor desconhecido)

Somos uma sociedade de pessoas com notória infelicidade: solidão, ansiedade, depressão, destruição, dependência; pessoas que ficam felizes quando matam o tempo que foi tão difícil conquistar.
(*Erich Fromm)

A depressão é a desvitalização, é uma perda de interesse pelas pessoas e pelas coisas. É um estado de prostração de desânimo diante da vida. É um sentimento de inutilidade e ignorância de tudo. A estafa é o nome mais comum dado as nossas depressões existenciais. É uma forma de cansaço físico e mental mais agudo.
(Jorge Reigada)

“Eis o segredo da vida… substitua uma preocupação por outra.”
(Charles Schulz)


(28/07/2008)

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