domingo, 2 de agosto de 2009

Sim senhor!


1987
Meu primeiro contato com o militarismo foi com um singelo cumprimento: tinha apenas sete anos de idade, lembro-me claramente como tudo o que aconteceu - estava brincando sozinho, em frente a minha casa, na rua em que havia crescido, quando cruzei com um tenente que provavelmente voltava da sua jornada no quartel. A sua roupa me chamou a atenção: impecável, cheia de insígnias, medalhas, broches; sua boina perfeitamente ajustada; coturnos brilhantes; a forma como ele andava apressado, ereto, portado; vindo despretensiosamente ema minha direção - fez com que eu ficasse a olhar e esperar que passasse.

Para minha surpresa ele parou, olhou para mim e sorriu; talvez pela minha cara de admiração ou qualquer outro motivo que o levou a também dizer o seguinte:

- Quero vê-lo lá no quartel com a gente daqui há alguns anos! Vai servir o Exército Brasileiro! - exclamou com orgulho!

Eu, do alto dos meus sete anos, disse que ainda faltava um tempo para chegar minha vez, mas gostaria de ter uma roupa daquelas - igual a dos meus bonecos do comandos em ação!
Ele, em tom de brincadeira, bateu continência e pediu permissão para se retirar!

Nunca mais esqueci este episódio; depois disso senti um interesse, uma vocação para o militarismo, mesmo sem sabe do que se tratava exatamente; só sabia que eram corajosos, valentes; matavam ou morriam; deixavam suas esposas e filhos em casa enquanto iam para o fronte.

1997
Dez anos depois, lá estava eu. Havia chegado o dia, mas muita coisa tinha se passado; eu com dezessete anos, recém terminado o ensino médio – o cenário era outro, minha cabeça estava em plena transformação ainda, mas eu realmente passei a entender o porquê de cada medalha, de largar suas esposas, filhos e morrer por um objetivo que não é somente o seu - vocação, necessidade, obrigação, orgulho, ego, poder...
Eu era o oposto do ideal militar; completamente, mas confesso que me enquadrei em alguns destes porquês.

Desenvolvi senso-crítico; questionava tudo: igreja, educação, comportamento, família, valores morais e não me contentava com respostas vagas. Eu tive esta liberdade de pensamento; pois antes dos dezoito anos era liberdade de pensamento, mas depois era a minha opção. Não sei se foi realmente uma opção de educação ou um desdém deixar-me à deriva, mas isso culminou em indecisões que desencadearam conseqüências até hoje.

Nunca fui condicionado a nada, ideologicamente falando; poderia ser o que eu quisesse; mas, contudo, dependeria unicamente do meu esforço. - Faça o que quiser fazer, mas faça. Era o que eu ouvia. Este foi meu único norte, incentivo; tão vago que me senti perdido.

Alistei-me. Serviço militar obrigatório. O-b-r-i-g-a-t-ó-r-i-o. Estava disposto a seguir carreira, posteriormente, mesmo sendo contra todos os meus conceitos, discordando da instituição, da sua posição perante a sociedade, mas era uma opção – a única que tinha no momento. Passava por um momento de turbulência, muitas provações, muitas perguntas e poucas pessoas para responder.

Eu tinha o perfil para o Exército (teoricamente): era jovem, não era arrimo de família, não trabalhava, não fazia faculdade, queria sair de casa, pouco me importava para onde fosse e o que tivesse que fazer. Eu queria fazer. Era contraditório; seria um choque de realidades, teria muitos problemas de disciplina, hierarquia, mas creio que me adaptaria rapidamente; ou melhor - seria condicionado.

Era chegado o dia da apresentação; no papel dizia para comparecermos duas horas antes do previsto, impreterivelmente. Eu tinha mudado radicalmente a minha fisionomia; havia eu mesmo cortado meu cabelo, raspado todos os fios; tinha abandonado os óculos que me davam um tom de fragilidade e adotado lentes de contato; estava com meu peso ideal; praticamente irreconhecível. Nada programado, não tive a intenção de demonstrar o que não era; na verdade estava cansado daquela fisionomia, da aparência de fraco, que carreguei durante a adolescência.

Foi condicionado por mim, pela falta de cobrança, pelos conflitos internos e pela auto-suficiência. O potencial estava dentro de mim, só faltava desenvolvê-lo; isso acarretou algum conhecimento.

Fomos recebidos com hostilidade; com piadas dos veteranos e pressão psicológica dos oficiais. A partir do momento em que cruzamos a cancela, estávamos ao comando do exército. Nada do que fazíamos era por vontade própria. Nada.

- Mexam-se; Organizem-se em fila; só falarei uma vez imbecis. Era o que ouvíamos aos berros. - ficarão em pé até serem chamados; ao sol, sem água, sem comida, sem banheiro e sem a mamãe dos senhores.

Indiretamente eu sabia que ali já se iniciava o método de seleção; ninguém ousava discordar ou perguntar nada, nem eu. Esperamos duas horas, em pé. Muitos davam sinais de cansaço; eu apenas de impaciência. Eramos chamados aleatoriamente e, à medida que se passava o tempo, a angústia aumentava. Eu observava tudo ao meu redor; a rotina dos recrutas, a imponência dos oficiais e a fisionomia de assustado dos quatrocentos com inciais “F”; “G” e “H” nascidos entre 1 de janeiro a 31 de dezembro de 1980.

Eu não queria questionar, pela primeira vez na minha breve vida eu queria cumprir ordens. Queria ser cobrado por um objetivo não definido por mim, queria apenas fazer por fazer.

Era chegado a minha hora; fomos conduzidos num grupo de vinte para uma sala por um recruta que nos deu boas dicas; entre elas não abrir a boca se não fôssemos questionados pelo capitão. Ficamos em fila dupla; os dois lados se olhando e o capital passeando vagarosamente pelo meio. Observava um a um e não falava nada. De repente parou no meio perguntou se alguém que estava ali tinha algum problema de audição; ninguém respondeu nada, apenas balançamos a cabeça em forma de negação. Ele pacientemente virou-se para o primeiro da fila e gritou, ou melhor, urrou os seguintes dizeres:

- Pois não me parece, fulano de tal (tínhamos um crachá com nossos nomes), pois eu fiz uma pergunta e não ouvi a resposta. Continuou a andar; os outros subalternos ao seu lado, em posição de reverência, sequer piscavam.
- Alguém aqui tem algum distúrbio de ordem sexual? - perguntou, desta vez em tom calmo e, em seguida, disse que, caso houvesse, manifestasse agora. Dizemos apenas que não; uníssono, tal qual soldados de verdade.

Está bem, então não temos mulheres aqui; estamos somente entre homens, estou certo? - virou-se para um menino aparentemente suspeito. Ouviu-se uma riso contido pela sala e o capitão perguntou calmamente em tom pausado. - Quem foi que sorriu? Todos se calaram, mas sabíamos quem tinha sorrido. Ele escolheu um e disse:

- Vou te dar uma chance fulado de tal, olhe para os meus olhos e diga quem foi que sorriu que estará dispensado do serviço militar obrigatório. Ele não entregou, titubeou, mas olhou sorrateiramente para o autor. O capitão disse: - Vocês se apresentam em junho; fulano e o autor da risada; voltem para o final da fila, ficarão em pé; espero que não estejam cansados, pois ficarão aqui até o final da seleção. Os dois se retiraram, cabisbaixos.
- Os demais tirem as roupas, será feito um exame clínico pelo médico do exército. espero não ter que esperar mais que cinco segundos... - ordenou.

Continuava a nos observar; sempre olhando nos olhos, fitando-nos de cima para baixo; ora sorria, ora fechava a cara. Olhou para mim...Senti um frio na barriga; ainda mais quando parou de andar e ficou a me observar...Pegou meu crachá com arrogância e me perguntou:

- Pereira, o que você está fazendo aqui, o que te trouxe até aqui? Virou as costas, saiu vagarosamente. Eu engoli seco, empalideci. Ele esperava uma resposta, pois, segundo nós mesmos, ninguém ali tinha problema de audição; ele me questionou, logo eu teria que responder.

- Estou aqui porque fui mandado para cá senhor, - disse eu sem gaguejar.

- Certo, certo, Pereira, você foi m-a-n-d-a-d-o. - frisou. Entendeu pessoal, o Pereira foi mandado, perceberam? - Se eu mandar ele cair no buraco ele vai cair, estou certo fulano de tal?

- Sim senhor! - respondeu fulano de tal. - É assim que funciona as coisas no exército – gabou-se o oficial.

Depois da entrevista pessoal, fomos preencher um formulário, com as mesmas perguntas que ele ele fez e outras mais específicas - mas agora por escrito, para poder fundamentar uma possível dispensa.

Esperamos lá fora depois. Uns já receberam a noticia do dia da apresentação, eu e mais dois fomos chamado para conversar com o capitão. Desta vez, numa sala reservada. Perguntou o porquê de realmente querer servir sendo que a grande maioria queria mesmo é ser dispensada e não tinha coragem de falar; ele ainda me disse que se eu quisesse seria dispensado no questionário mesmo, pois era só eu fundamentar com a minha “baixa acuidade visual” o meu pedido de despensa que seria aceito, pois o primeiro critério era a avaliação física. Mesmo assim eu coloquei que queria servir Ele disse que, infelizmente, para minha sorte o primeiro critério era a saúde física, por assim dizer.

- Este é o primeiro critério de seleção do exército Fabiano, você pode ser negro ou branco; burro ou inteligente; rico ou pobre, mas só sera dispensado caso tenha algum problema de saúde: (seleção natural, frisou) e que, você aparentemente não tem, mas infelizmente você tem miopia em grau acima do aceitável e pelo visto depende de óculos ou lentes de contato. Achei estranho as marcas de óculos queimado de sol no seu rosto e você não apresentá-los. Teve sorte de o seu colega rir num momento inoportuno, pois você seria o meu alvo durante o questionário Pereira, e eu não teria pena nenhuma de você. Nenhuma.

- Lamento, mas você está dispensado do serviço militar obrigatório.



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