quarta-feira, 15 de julho de 2009

Men at work.



Quinta-feira, 9 de julho, aproximadamente 16:00 horas da tarde; piloto e co-piloto na estrada, acelerando sobre um trecho retilíneo da BR-486 - já com dois terços do caminho percorrido de volta para minha casa, em Foz do Iguaçu...

O tempo tornara-se inóspito neste instante: seria um prenúncio? Não, não. Apenas uma precipitação chuvosa; uma mudança brusca de clima - talvez fomentada por uma frente fria vinda do sul. Senti um choque térmico muito grande - estava completamente despojado em vestimentas - deixei as formalidades para o “começo” da festa de formatura da minha irmã, no final de semana anterior à minha volta.

Seguia feliz da vida com meu tênis sujo e minhas roupas de verão limpas - lavadas carinhosamente pela minha querida mãe, foi quando fui surpreendido por um calafrio seguido de um suspiro de ansiedade ao ver que não estava mais sob os cuidados de ninguém, que não (obrigatoriamente) os meus.

Foram exatos 39 dias longe do trabalho; destes apenas os últimos seis longe daqui. “Privilégio” adquirido devido a férias, folgas e trocas de plantões de trabalho.

Descanso primeiramente para o corpo - já tão desgastado pela rotina extenuante de doze horas dia sim/dia não ao tempo: faça chuva ou sol; feriado ou aniversário da mãe – somado à má alimentação devido à falta de tempo; vida desregrada; sedentarismo nos finais de semana e excesso de exercícios durante.

Já os últimos seis dias descansei de tudo, inclusive de mim: corpo e pensamentos – zerei, resetei minha memória - descansei tanto que fiquei cansado de novo - eis então que aproximava-se da minha redenção. A minha prisão voluntária, a minha pena a cumprir e a sentir, aquilo que tanto me consome e ao mesmo tempo me nutre, o meu contraditório, sempre paradoxal ambiente de trabalho e seus resultados.

O velho e já gasto colete estava dependurado há tempos no cabide, sempre o deixo bem à vista para que sempre ao abrir o guarda-roupas, me debater em pensamentos, acontecimentos, situações para eu levarei para o resto da vida. Desbotado, descosturado em algumas partes. Lembro-me quando me entregaram novo, ainda no plastico e me disseram: “Cuide bem do dono dele e se sobrar tempo, cuide dele, pois será o primeiro e o último – seja bem-vindo ao Estado”. Eu entendi o conselho amigo e o sarcasmo e estava ansioso por vesti-lo.

Ostentei-o orgulhosamente por anos a fio: em tempestades de granizo, geada, calor infernal e lavagens diárias – resultado de muito suor, poeria, bactérias, sangue, terra, esbarrões e contato físico com outras pessoas.

Hoje já não o uso tanto - apesar de continuar a sofrer os mesmos reveses, prefiro as camisetas que “ganhamos” do sindicato. São mais funcionais, justas ao corpo, não-customizáveis Não são dotadas de presilhas de ajuste, o que nos garante a segurança de não sermos estrangulados durante uma rebelião por nossos próprios instrumentos de trabalho.

No braço esquerdo, ostenta o emblema sindical – estampando um aperto de mão e logo ao fundo uma balança equilibrada ao seu meio. Já no direito, temos a bandeira do Estado – bem menos discreta, porém bem mais imponente do que o símbolo sindical. Sindicado do lado esquerdo, Estado do lado direito e nós ao meio. Não sei dispostas desta forma devido alguma alusão à sua origem socialista (sindicato) ou uma simples convenção militar (visão estatal); mas, enfim sei que na prática somos três entidades com interesses distintos: completamente diferentes, quiçá com um objetivo em comum, supostamente comum. Já acima do coração - não propositadamente, acredito - fica o emblema da secretaria da qual somos vinculados; a da Justiça e nas costas carregamos todo o peso de nossa função – estampado em letras garrafais, na cor amarela, fontes levemente arqueadas e que se completassem a frase toda, tornaria-se um alvo, literalmente.

Eu senti falta deste peso; dele e de todas as suas implicações que conseqüentemente agrega ao meu estado de espírito. Senti falta da pressão psicológica feita ou absorvida por mim; do inevitável desgaste físico diário; risco de vida constante e iminente; do descontentamento geral; tortura emocional; comida industrial e sua falta de tempero; das responsabilidades, obrigações, vontades que sobrepõem à qualquer outra, a da lei. Senti falta do descaso, da desorganização e a improvisação do Estado e toda a sua suposta falta de recursos; das ameaças de agressão física e de morte; da agressividade do ambiente insalubre; das cobranças sofridas e oferecidas por todos. Eu senti falta de oferecer e sofrer cobranças...

Com tantas desvantagens, conflitos e riscos de vida como pode alguém sentir falta, ou ainda, necessidade disso na sua rotina diária? A resposta está implícita no próprio questionamento: é uma necessidade que eu sinto. Todas estas adversidades, responsabilidades, somada aos riscos que são inerentes à profissão, me consomem. Sou absorvido pelo trabalho, sou desafiado diariamente, por tudo e por todos, é a defesa da vida dos outros, de interesses que não são somente os meus.

Sou bombardeado a cada minuto por situações hipotéticas. Pode acontecer tudo isso ou não - é uma incógnita, porém devemos estar sempre preparados para o pior.

Esta é a minha motivação maior. Não há uma rotina no meu trabalho, há uma dinâmica e esta dinâmica envolve inúmeras situações/pessoas - que por sua vez estão vinculadas à outras realidades: seja de colegas, legislação, técnicos, presos ou organizações – são milhares de possibilidades que podem ou não acontecer. São pensamentos; conhecimentos; convicções; ideais e crenças divergentes – tudo teoricamente direcionado a um objetivo final comum.

É inegável que em muitas das vezes nos perdemos nos meios, mas o objetivo deve ser alcançado, sempre - o do Estado, claro - excluem-se os nossos, os sindicais e o dos condenados.

Infelizmente muitas das vezes esbarramos apenas nos nossos, que na maioria das vezes não converge. Para uns pode ser o fiel e irrestrito cumprimento da lei; para outros a sobrevivência em si; a regeneração do preso; a manutenção do emprego; o poder em seu estado mais latente; talvez simplesmente aliviar a tensão; a fuga (física ou emocional); a estabilidade; a liberdade e a prisão.

Para mim o objetivo é o meu trabalho, chegar em casa exausto ou totalmente descansado; às vezes chocado com algum acontecimento ou simplesmente gargalhando com uma situação inusitada; aliviado por estar vivo ou raivoso por alguma injustiça; revoltado com o sistema ou conformado com suas limitações. É saber que todos que estavam conosco também chegaram em suas casas, independente dos objetivos e interesses. Dependurar o colete ou a camiseta no varal depois de lavá-lo à exaustão até que tudo de ruim que fora absorvido, escorra pelo ralo e soe como lição de vida. Minha rotina é justamente não ter rotina.

Eu lembro das palavras de um experiente instrutor, ainda no curso de formação em 2005, quando perguntado como seria nossa rotina de trabalho; ele respondeu basicamente com uma pergunta que calou toda a sala: - “Rotina?”.


(É um trabalho enriquecedor, acredite – não financeiramente, longe disso, bem longe - claro. Falando nisso... há sindicato cadê os 15% só para começar que nos prometeram? Tenho data para sair “vivo” do sistema, espero - e sem nenhuma licença médica por estafa mental. É a maior experiencia que alguém poderia ter na vida; principalmente sobre comportamentos, pois o nosso trabalho é basicamente um jogo de nervos; adaptação às pessoas; imposição; auto-controle; malícia; sangue-frio; jogo de cintura e muito, mais muito poder de convencimento e negociação.
Não há como ser extremista trabalhando com pessoas que não tem nada a perder, ainda mais se pautado por normas frias e ultrapassadas, feitas há mais de trinta anos, movidas por uma máquina estatal que só me manifesta (e quando se manifesta) para dizer que não há recursos para investir em nada (treinamento, equipamento e remuneração condizente com a periculosidade da função).
Ponderação para não enlouquecer e rigidez quando necessário - embasado em normas para se proteger. Este é o meu pilar.
Os conflitos com os presos são evitáveis na maioria das vezes, justamente por nós que somos os mais capacitados, juntamente com todo o corpo técnico,desde que trabalhando todos em sinergia de objetivos).

Um comentário:

  1. A observação final, entre parênteses, conseguiu ser um texto à parte... como sempre, EXCELENTE!
    :-)
    Bjs

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