quinta-feira, 24 de junho de 2010

Onde os fracos não tem vez.




Fazia frio, chovia um pouco, o ambiente inóspito de sempre, agora com ares de masmorra - devido ao som fantasmagórico do vento chocando-se por dentro das galerias principais. O silencio sepulcral imperava; às vezes dividia a atenção com uns pingos d’água que gotejavam insistentemente das torneiras dos antigos chuveiros. Por ser domingo, o odor que imperava era da substancia ilegal vulgarmente conhecida como “maconha”. O famoso e inocente “baseadinho”, que segundo intelectuais de esquerda – parados nos anos setenta, - não faz mal a ninguém.

Afora as questões legais e sociológicas da coisa, atrevo-me apenas a fazer um comentário oportuno. O circulo vicioso estava fechado desta forma. De repente o que era o distribuidor passava a ser consumidor. Ficando restrito a este laço, não envolvendo diretamente a sociedade, não seria tão mal de certa forma.

Infelizmente não cabe a nós, meros instrumentos do Estado, salvar o planeta de todos os males. Cabe a nós cumprir somente o que está determinado, e este diz que não se deve consumir/possuir/comercializar substancias entorpecentes dentro deste tipo de ambiente.

Então, caso seja feito o flagrante: com os devidos ritos legais, inicia-se o procedimento administrativo, e este, posteriormente culmina numa sanção disciplinar. Caso contrário, sem a materialidade (lê-se provas concretas, pegar a substancia em si) só nos resta tapar os narizes e cortar regalias como retaliação. Como entra em numa penitenciária drogas ilícitas? É uma boa pergunta; mas a principal é através de ingerir/regurgitar/ingerir novamente. Trocando em miúdos: a visita do detento engole a droga e quando está sozinha com o preso, vomita, este engole e leva para a cela e vomita novamente, onde é consumida e comercializada.

Era para ser só mais um dia de trabalho, na verdade uma reposição de horas, na qual eu voluntariamente e a meu critério resolvi compensar neste plantão. Se não fosse um fato isolado e particular, eu sairia da mesma forma que entrei no plantão. Adstrito ao meu trabalho.

Eles sabem a roupa que uso em determinados dias, os meus trejeitos, a forma como amarro os sapatos, meu tom de voz, sabem onde moro, onde mora minha família, conhecem meus hábitos noturnos, diurnos, os meus esportes preferidos e tudo isso sem eu fornecer sequer uma informação. Como? Também me perguntava como isso era possível, porém aprendi que são praticantes fervorosos de uma técnica muito simples: a observação. Rotina, rotina e mais rotina. Sempre as mesmas falas, os mesmos procedimentos, os mesmos castigos, as mesmas regalias, as mesmas respostas para as mesmas perguntas.

Nesta noite de trabalho, durante o procedimento de contagem dos presos, fui interpelado por um interno que educadamente iniciou uma tentativa de diálogo. Seu rosto, assim como o de todos, não me era nem um pouco familiar. Achei que fosse perguntar alguma coisa acerca de procedimentos ou ia pedir para que deixássemos a televisão ligada uns minutos a mais para poderem ver o final do filme. A resposta estava na ponta da língua como sempre e estava preparando um... “Vou verificar se é possível com o responsável, depois eu lhe informo”. (detalhe: o responsável sou eu!); quando para minha surpresa, ele veio me pedir desculpas.

Até então não tinha parado para observar ao meu redor. Estávamos no meio de um culto religioso - acredito que evangélico -, pois bíblias e copos d’água estavam decorando a entrada das celas.

De repente tudo silenciou-se ao meu redor, fiquei muito surpreso e ao mesmo tempo assustado. Estes são tipos de pessoas que não admitem seus erros, tão pouco pedem desculpas.

- Há de ter sido algo de muito grave então. - Pensei.

Parei de contar e perguntei qual o motivo do pedido de desculpas, pois não me lembrava de qualquer incidente com aquele homem.

- O senhor não se lembra de mim? Sou o fulano de tal, passei por aqui há dois anos. – Tentava se explicar.

- Não, não me lembro. – Respondi seco.

- Então, teve um episodio que eu fui muito agressivo com o senhor, na época em que cuidava das pilhas e dos rádios…

- Mas isso foi há muito tempo, eu não me lembro mais. Depois disso eu fui para o período noturno, retornei para o diurno e agora estou à noite novamente.

- Pois então, de qualquer forma eu estou aqui arrependido do que fiz, não tinha o direito de te tratar daquela forma e quero que me desculpe por isso, estou arrependido por ter sido tão grosseiro e agressivo.

De repente eu fiquei desarmado. Pouco me importava o episodio, o preso ou o dia. As coisas não são assim; nossas diferenças sempre são resolvidas com hostilidade, ódio e agressividade de ambas as partes. Não há meio termo. Um manda e o outro obedece. O mínimo deslize de ambas as partes é tratado como uma vitoria pela outra. É uma competição quase que vital.

- Você não pode quebrar o protocolo assim de uma hora pra outra, pensei.

- Eu queria que o senhor me perdoasse…

Esta frase foi seguida de uma mão estendida e um olhar sincero.
Não foi preciso imaginar o que aconteceu depois. Eu sigo protocolos por mais rígidos que sejam, então…

Era pra ser uma redenção, com todas as glórias sonhadas por sociólogos, assistentes sociais, beatas de paróquias, psicólogos, direitos humanos e intelectuais. Na teoria foi, mas não pude demonstrar isso na prática.

- Infelizmente não vou poder pegar na sua mão preso e você sabe o motivo. Estamos em lados opostos aqui e muito provavelmente lá fora também. Mas fique sabendo que as suas desculpas foram aceitas, não há nenhum ressentimento de minha parte. Muito provavelmente eu estava cumprindo meu papel e você, tentando me impedir, como é de praxe. Que bom que pensa desta forma agora, é o que tem que ser feito. Cumpra a sua pena sem maiores incidentes e recomece a sua vida assim que sair deste lugar. Espero que incidentes daquele não se repitam mais. – Finalizei.

Disse tudo isso sem demonstrar qualquer tipo de sentimento que não a serenidade.

No fundo eu me senti satisfeito, realmente as pessoas têm cura, ou melhor, solução; uma minoria até então, que se resume em menos de 0,1%. Meu lado humano não me deixa desacreditar em regeneração. Infelizmente ele só passou um pequeno obstáculo, ainda há muitos.

Apesar de satisfeito não me sinto empolgado. Sei que estes são casos raros e que é muito mais prudente acreditar que na primeira oportunidade que tiver, ele vai colocar um estoque afiado no meu pescoço e não estender a como uma forma de cordialidade. Segui em frente, continuei a contagem dos presos, ao som de hinos evangélicos.

(02/10/2008)


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