sábado, 30 de maio de 2009

O aprendiz.


Estava precisando de algo para me entorpecer; talvez um carnaval em pleno inverno - pessoas ensandecidas, pulando como loucos atrás de um carro com um som ensurdecedor e com um objetivo em comum: não ter objetivo!

Ou quem sabe uma final de Copa do Mundo – espírito verde-amarelo em ação; “Brasil, sil, sil!”; - patriotismo à flor da pele - as ruas pintadas, vovós assistindo os jogos e perguntando o que significa impedimento e, ao término da partida, trocando de canal para colocar na novela das seis.

A chuva me esgotou - a impressão que fiquei foi de que a sua cadência leve, seu ritmo freado, somado às fagulhas em vez de gotas d´água – era uma tentativa insistente de levar tudo que aprendi nestes três anos de trabalho dentro de um sistema prisional.

- Mas neste ritmo pensei? Brando, calmo e num dia ermo... - Cade os temporais? As tempestades? - O estardalhaço? Somente estes fracos e insistentes pingos?

Estava no trabalho - concentrado e atento a todos os movimentos das pessoas e pronto para suas reações. Antes de me chamarem pelo rádio-comunicador já tinha a resposta! Movimentação suspeita de presos, vultos, mosquitos, cachorros: ninguém me pegava desprevenido; devido a experiencia adquirida, instinto de sobrevivência, o medo de prejudicar a vida de um colega ou pelo que chamam de profissionalismo - nem mesmo a chuva era capaz de me entreter, mas seus motivos, aparentemente sim.

Logo conclui que seria preciso muita insistência, diferentes intensidades e direções para que, enfim, eu prestasse atenção em algo abstrato. Ao caminhar pelo perímetro, tentava desviar das poças, das lâminas d'água que se formaram - tentava pela grama, pelo concreto e pelo asfalto, mas sem resultado; Saída duma e caia noutra. Os pingos que não pegavam na lente dos meus óculos – causando a desagradável sensação de condensação – pegava-me, literalmente, pelos pés.

Meus tênis estavam encharcados, pesados – eu ia e vinha; às vezes sem direção. Esperava um resfriado, dores de garganta ou uma advertência do supervisor, mas nada. - Voltei-me ao meu objetivo, sentei-me numa cadeira e voltei a observar, era basicamente o que me sobrara numa tarde chuvosa de trabalho, cobrindo o plantão de um colega e, mal lembrava se era sábado, terça-feira, pois a rotina é a mesma; os procedimentos idem; respirei fundo...

- Quer dar uma volta, eu fico no seu posto Fabiano. - Perguntaram-me, atenciosamente. - Não, não, para falar a verdade estou bem assim, está um dia tranqüilo. - Respondi objetivamente e direto, mas pensei: - Afinal de contas ir para onde? Estamos numa prisão!

Nenhuma movimentação atípica ao meu redor, somente a chuva incessante; sempre ela no meu pé e na cabeça; ninguém querendo cortar meu pescoço (literalmente), serrando grandes ou discutindo entre si. Não há tensão ou atrito entre os colegas; somente a chuva tentando chamar minha atenção, tentando fazer escorrer alguma sensação já assimilada.

Não conseguiu; estava inerte, entretido nos meus pensamentos – fiz um balanço da minha vida profissional "formalizada"; enfim iniciou-se o rito para a conclusão do processo de estágio probatório no trabalho. Tão formal quanto uma cerimonia secreta para uma seita qualquer e com pompas de burocracia estatal, cobranças e nem um: “meus parabéns”; ou um: “tem certeza que quer continuar aqui neste lugar?”

- Este é seu processo, está sendo formulado pela Direção da Unidade e será avaliado por uma comissão de avaliação de desempenho da Secretaria de Justiça, assine aqui, por favor... - Informaram-me no meio de um procedimento, jogando os papéis nos meus braços.

Entrei na condição de um número e corro o risco de sair como um artigo publicado no Diário Oficial do Estado, com meu respectivo número, caso não houver ainda, alguma situação pendente. Estou tranqüilo!

Fogos? Comemorações? Não, apenas um sorriso discreto, daqueles que são internos e somente você percebe, um riso contido, uma leve descarga de adrenalina no sangue. Tudo dentro do planejado, dentro do que já tinha previsto e, um pouco mais brando até do que imaginei - apesar do ambiente inóspito, do local distante, dos apelos da família, eu vim; e tudo dentro do que imaginava no dia em que peguei uma chuva parecida com esta - idos de janeiro de 2004, quando voltava de um curso preparatório.

Vi, vivi e aprendi tanta coisa, mas tanta que nem mesmo a insistente chuva conseguiria levar...Independente de intensidade ou tempo...

Sempre de ambos os lados; de presos a colegas de função – técnicos a visitantes; autoridades a prestadores de serviços - aprendi sobre comportamentos; personalidade as mais variadas; egos; astúcia, imbecilidade; desespero; medo; felicidade; traição, companheirismo, indiferença, piedade, esperança, ódio; humanismo, angústia; saudades; tristeza; depressão; morte, planos; separação; amizade; arrogância; violência em todos os sentidos e pressão, muita pressão psicológica.

Só nunca mesmo, nestes três anos de trabalho - consegui me desvencilhar das chuvas - estas sim, permearam todo meu corpo todas as vezes, mesmo com coturnos novos ou com meus pares de tênis de nylon - mas quanto ao que vi, tornei-me impermeável a todas experiencias, porém não inerte - e é por isso que acredito que esta, sem sombra de dúvidas, será a mais marcante experiencia de convivência profissional da minha vida; mesmo sabendo que é passageira, assim como TODOS que passam por lá e um dia e, invariavelmente, um dia - sabem de lá.

- Falta apenas um plantão para as minhas férias, então poderia parar de chover, pois tenho que me preparar para amanhã... - Pensei enquanto tirava o colete encharcado para ir para casa descansar...

Um comentário:

  1. post perfeito pra quem só precisa de um bom texto pra projetar um filme na cabeça. como um bom livro!
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    que bom que gostou do ginsberg. aliás, legal você ter reparado na frase e ido buscar mais, é a prova de que ação causa reação... tipo meu post sobre o paulo coelho!

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